Tiago Correia

Comentador SIC Notícias

País

O verão quente da saúde

Opinião de Tiago Correia, comentador SIC e professor de Saúde Internacional.

O verão quente da saúde
Anders Clark / EyeEm

A silly season parece não ter chegado com o calor lá para os lados do Ministério da Saúde, dado que o início de agosto ficou marcado por uma promulgação presidencial do novo estatuto do Serviço Nacional de Saúde (SNS) cheia de reparos e recados ao governo. A semana começa também com o ministério a admitir que não consegue ultrapassar a falta de médicos para manter as urgências de obstetrícia em pleno funcionamento, a não ser que estes mostrem boa vontade. Já lá vamos.

Um novo estatuto do SNS que cumpre os mínimos

O Presidente da República promulgou o novo estatuto do SNS com duas notas. A primeira é que pondo de parte a justiça dos motivos, o diploma chegou tarde para operacionalizar uma Lei de Bases de Saúde que tem três anos. Impunha-se celeridade nesse processo sob pena das mudanças reconhecidas pelo governo como sendo necessárias já em 2019 não terem o devido enquadramento jurídico, logo forma de serem concretizadas.

A segunda nota é que a urgência de promulgar um novo estatuto do SNS impôs-se à avaliação da qualidade do documento aprovado pelo governo. Marcelo Rebelo de Sousa deixou claro que o novo estatuto do SNS mais não faz do que cumprir os mínimos para ser promulgado. Subscrevo a crítica presidencial.

Não tenho dúvidas em dizer – e disse-o mal o documento foi conhecido – que aquela versão não continha as respostas que dele precisamos. Um motivo é que falta perceber o processo de implementação das políticas.

Um motivo é que falta perceber o processo de implementação das políticas. Está em causa distinguir entre a aprovação de um diploma e saber como é que esse diploma é colocado em prática. A ideia de desenhar a implementação política apenas depois de aprovar o desenho da formulação é demasiado antiga, e o consenso académico é recomendar que os dois sejam definidos em simultâneo. Neste aspeto não considerarei que haja um erro grave, mas antes uma limitação evitável no processo político que deixa em aberto o sucesso ou insucesso da concretização do novo estatuto do SNS.

Outro motivo é que o estatuto do SNS, sendo um documento de regulamentação, pouco ou nada acrescenta na regulamentação das matérias mais importantes. Também por esta via, as soluções políticas são adiadas para um momento posterior.

Foi isto que o Presidente da República sinalizou. Sinalizou ainda uma indefinição política – séria a meu ver – e sobre a qual também já escrevi: afinal, o que é a descentralização da saúde? Por um lado, há políticas ora centralizadoras (pense-se na figura da Direção Executiva do SNS ou na aprovação dos gastos pelo ministério das finanças) ora descentralizadoras. Por outro lado, há uma completa falta de racional político no foco da descentralização, dado que tanto incide sobre as administrações dos hospitais e dos agrupamentos dos centros de saúde, como de entidades locais de saúde, de entidades intermunicipais e ainda dos próprios municípios. Enquanto tudo isto se mantiver, as duplicações, os vazios, o empurra de responsabilidades, logo, as inações, cá continuarão.

Afinal a falta de médicos de ginecologia/obstetrícia é estrutural

O governo fez-se representar numa conferência de imprensa pelos Secretários de Estado da Saúde, a que associou o coordenador da Comissão de Acompanhamento de Resposta em Urgência de Ginecologia, Obstetrícia e Bloco de Partos. A meu ver, esta forma de comunicação resultou muito bem porque permitiu conhecer e distinguir o julgamento político da avaliação técnica dos problemas.

Foi possível obter uma leitura integrada da situação, o que facilita a compreensão das respostas políticas, o quão longe ainda estamos da resolução deste problema, mas que os profissionais envolvidos no apoio à decisão política estão confiantes no compromisso do Ministério da Saúde.

No imediato pouco mais há a fazer do que confiar na adequação do regime regulatório de exceção para os médicos em serviço de urgência aprovado há uma semana, que prevê o pagamento entre 50€ e 90€/hora. Na conferência de imprensa foi deixada a indicação de que os médicos disponíveis para realizar trabalho extraordinário nestes termos têm aumentado e foi deixado um apelo para que mais médicos aceitassem estas condições.

Quanto aos problemas estruturais e soluções associadas, o essencial do que foi dito é que:

  • Há menos médicos e médicos mais velhos

O número de médicos especialistas e internos em ginecologia/obstetrícia no SNS são cerca de 1100, o que representa uma diminuição não quantificada face a um passado também não estabelecido. O principal motivo é a perda da atratividade da carreira médica no SNS, que tem empurrado os profissionais para a emigração, para o setor privado e para o trabalho em regime de prestação de serviço no SNS.

Associado a esse “desfalque” (expressão usada durante a conferência de imprensa), há um envelhecimento destes especialistas, o que coloca problemas de renovação geracional a médio/longo prazo e problemas imediatos nos serviços de urgência, dado que a partir dos 55 anos de idade, esse trabalho passa a facultativo para os médicos.

Como pareceu claro no início deste problema, não há forma de passar por cima da situação sem negociar novas carreiras médicas, o que provavelmente abrirá a porta à reivindicação por parte de outros grupos profissionais.

  • Há uma distribuição desigual dos médicos

A falta destes profissionais não é comum nas várias regiões nem nos vários hospitais. Logo, não é de estranhar que notícias da falta de médicos contrastem com notícias sobre o regular funcionamento dos serviços.

Há muito tempo que se tentam soluções de majoração salarial como atrativo, mas que têm produzido resultados pouco interessantes. As soluções passam por tornar a majoração salarial mais significativa e/ou criar o enquadramento legal para a mobilidade de profissionais em casos muito específicos. A situação não seria nova (pense-se no saudoso serviço médico à periferia que construiu uma identidade coletiva em torno do SNS e da profissão médica) nem tinha que ser dramática porque podia incidir em serviços médicos localizados na mesma cidade ou em cidades contíguas.

  • Desarticulação do SNS

Não se registam apenas problemas no lado da oferta de médicos. Também existe excesso de procura. Foi referido o elevado número de atendimentos nas urgências e o facto de parte importante destes atendimentos não representar verdadeiras situações de urgência médica.

O que está em causa, uma vez mais, é que os centros de saúde não representam uma alternativa viável e de confiança para as utentes. O resultado é a necessidade de alocar muito tempo de trabalho aos serviços de urgência quando o trabalho de ginecologia/obstetrícia tem que incluir outras atividades programadas (consultas, ecografias, bloco operatório).

Nesta desarticulação ainda se identificou a necessidade de melhorar as orientações técnicas da Direção-Geral da Saúde, garantindo que as utentes são corretamente referenciadas para os serviços mais adequados a cada situação e que por definição não vão parar à porta dos serviços de urgência.

  • Melhorar a resposta do SNS

Em causa está a necessidade de dotar o SNS com melhores recursos e infraestruturas e para tal é vital a utilização dos fundos do PRR como forma de investimento complementar na qualidade dos serviços prestados. Isto tanto afetará os profissionais como as utentes, especialmente considerando a capacidade hoteleira dos prestadores privados.

Outro domínio são os sistemas de informação às utentes. A informação está muito dispersa e confusa. De pouco serve melhorar os cuidados se as pessoas não sabem quando e como lhes podem aceder.