Coronavírus

Ao meu pai, que os braços não alcançam - Fica em casa!

O meu (pai) está à mercê de um Chefe de Governo que diz agora, numa inusitada mudança de discurso, fiquem em casa, mas cujo pai insiste publicamente na teoria de que ir a um pub é uma deslocação de primeirissima necessidade.

Ao meu pai, que os braços não alcançam - Fica em casa!
Henry Nicholls

Partilho com o meu pai, desde sempre, uma absoluta incapacidade para fixar datas.

Para se perceber bem do que falo, partilho convosco um episódio que aconteceu há uns bons 20 anos.

O meu pai, cujo sentido sentido de humor é tão dele, que nunca ninguém sabe se está a brincar ou falar a sério, ligou-me pelas 8 da noite de um 6 de Julho.

Queria dar-me os parabéns. Acontece, insistia eu, entre uma gargalhada e outra, que eu não fazia anos.

Tenho a certeza que alguém faz anos hoje, repetia ele.

Tu és péssimo com datas, respondia-lhe eu.

Atalhemos.

Devem ter sido precisos uns 15 minutos de um diálogo digno de um guião do Flying Circus para eu perceber que estava mesmo a gozar comigo.

Era o dia de aniversário dele. E eu, às 8 da noite, preparava-me para jantar como se fosse um dia exactamente igual ao anterior. Nem um telefonema. Nem um sobressalto da memória, acordada de repente por um cheiro ou um objeto.

Enfim...rimos os dois.

Há uns 5 anos os meus pais, então já com mais de 60, foram, empurrados pela crise que o país atravessou, trabalhar para Londres.

Nunca fomos de ligar uns para os outros todos os dias. Mas as datas, que até aí foram tantas vezes subtraídas do calendário, passaram a ser um sobressalto da minha memória. Logo pela manhã. Sem lembrete no telemóvel, fotografia a rodar no wallpaper do pc ou cheiro de camisa engomada. Não raras vezes, antes mesmo do primeiro trago de café.

Acontece que o calendário trocou-nos as voltas, de há uma semana a esta parte.

Em casa, numa rotina esquisita, ou na falta dela, tem sido um Domingo atrás do outro.

Pautados, todos, sem excepção, pelos truques da tal memória, que não fixa datas, mas que me lembra amiúde de como há 12 anos, por causa de um problema pulmonar que não vem ao caso, tive de ficar em isolamento no Curry Cabral. Foi, porventura, a solidão mais acompanhada que tinha experimentado. Já então, nada de beijos nem abraços. Já então, as máscaras e os tubos e um sem fim de impedimentos e regras que o afeto não trata, nem quer tratar, por tu. Mas sempre, sempre, os meus pais.

Quando, há uma semana, vim para casa, assaltada pelo medo do deja vu, quis ligar-lhes. Crente que os encontrava também em casa, e que podia agora devolver-lhes o que há 12 anos lhes devia (em bom rigor, há 38. Por tudo. E por nada).

Soube então de uma mãe com febre, a quem recomendaram que ficasse em casa. Positivo ou negativo? Nada de teste.

E de um pai a trabalhar, cobaia de uma qualquer experiência de um cientista louco, daqueles dos filmes, que em sentido contrário ao mundo inteiro, acha que a solução para a pandemia de coronavírus é...não fazer rigorosamente nada.

Ao sinal de fim de chamada, o primeiro sobressalto - Faltam 2 dias para o dia do pai.

Aqui e ali, ora nas redes sociais, ora na boca de um especialista via skype para as tv's, percebi que não era só minha a preocupação com um pai que não fica em casa.

Mas o meu....

O meu...

O meu não é só teimoso.

O meu está à mercê de um Chefe de Governo que diz agora, numa inusitada mudança de discurso, fiquem em casa, mas cujo pai insiste publicamente na teoria de que ir a um pub é uma deslocação de primeirissima necessidade.

Hoje é dia do pai, gritou-me o calendário antes do primeiro abrir de olhos, na cama.

É engraçado como, no preciso momento em que datas, horas e coordenadas de GPS se confundem...

Quando o mundo inteiro já tem que puxar dos dedos e contar para saber que dia é...

Eu tenho para mim que poucas vezes estive tão certa...É dia do pai.

Espero que ele se confunda e me ligue, ao final do dia de trabalho, a dar-me os parabéns.

Para poder então pedir-lhe uma prenda.

Fica em casa!!!

PS - Dois dias depois do susto, a minha mãe está bem e a mostrar aos ingleses como se faz...em casa!

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