Quando a dimensão humana e, portanto, psicológica é inerente à justiça, afigura-se essencial o contributo da Psicologia, entre outras ciências forenses.
A modernidade exige que os tribunais sejam céleres nas suas decisões e as transformações recentes verificadas na prática judicial têm como fio condutor, ou pelo menos deveriam ter, a centralidade da ciência, como ferramenta que possibilita a introdução de mais objetividade e rigor na análise dos elementos existentes e na tomada de decisão.
Uma das áreas que tem vindo a merecer maior destaque é a Psicologia do Testemunho.
O que é a Psicologia do Testemunho?
A Psicologia do Testemunho é uma das áreas da Psicologia da Justiça, que tem como finalidade apreciar a exatidão do testemunho produzido no âmbito das investigações judiciais.
Partindo da análise científica das declarações prestadas junto de instâncias de controlo social, podemos dizer que a Psicologia do Testemunho foca-se em três grandes objetos de estudo, nomeadamente a avaliação dos erros do testemunho, voluntários ou involuntários; a avaliação da credibilidade do testemunho; e a avaliação da fiabilidade do testemunho.
Aqui, cabem múltiplos esforços, tais como a investigação científica desenvolvida com a finalidade de desenvolver protocolos, metodologias e instrumentos cada vez mais robustos na avaliação psicológica; aperfeiçoar as técnicas e protolocos de entrevista, os quais assumem, por exemplo, particular importância na recolha do testemunho de crianças; auxiliar na definição de procedimentos judiciais a utilizar na recolha do testemunho de vítimas vulneráveis, como são exemplo as declarações para memória futura; analisar a influência dos diferentes processos psicológicos em situação de testemunho, por exemplo, a implicação das emoções ao nível de reconhecimento de faces e erros de memórias.
Através de um conjunto de conhecimentos e técnicas provenientes, fundamentalmente, da Psicologia Cognitiva, Psicologia Experimental e Psicologia Social, este segmento da Psicologia da Justiça regista uma evolução e investimento crescente, constituindo o mote para a identificação de problemas e para a possível resolução dos mesmos, com vista à diminuição de erros judiciários.
O que pode interferir no ato de testemunhar?
São vários e até mesmo complexos os processos psicológicos que podem influenciar o ato de testemunhar, tais como a atenção, a perceção do ambiente e a emoção.
Um dos principais pressupostos sobre a capacidade da atenção é que existe uma capacidade limitada de processamento de informação. Um dos fenómenos que demonstra os limites da capacidade de atenção é conhecido como cegueira intencional, que mostra que nem tudo o que vemos é processado de forma consciente.
Por exemplo, a emoção influencia não apenas os nossos pensamentos, respostas fisiológicas e respostas comportamentais, como também imprime significado aos acontecimentos que temos no nosso quotidiano.
Alguns estudos têm demonstrado que as pessoas recordam melhor eventos emocionais do que eventos neutros e que, em situações em que a atenção é limitada, os estímulos emocionais são codificados de forma mais eficaz, quando comparados com os estímulos neutros.
A emoção também parece melhorar o processo de consolidação da informação, visto que, com o passar do tempo, a memória para os eventos emocionais parece ser preservada ou até mesmo melhorada.
A identificação e conhecimento das variáveis que interferem com as competências para testemunhar e, consequentemente, a fidedignidade da declaração produzida, revela-se, particularmente, importante para definir e selecionar técnicas de entrevista mais apropriadas e eficazes para a testemunha em causa, diminuindo a probabilidade de ocorrência do erro no testemunho.
Tal resumo ajuda a compreender porque nem todas as declarações produzidas pelas mais diversas testemunhas de um determinado processo, podendo ser apelidadas de “boas”, serão necessariamente verdadeiras. Daí a imperativa necessidade de se proceder a uma análise cuidadosa e rigorosa dos testemunhos produzidos em sede de tribunal, em termos dos processos psicológicos subjacentes, validando-os prudentemente.
É possível avaliar a capacidade para testemunhar?
A capacidade é, em termos médico-legais, entendida como a aptidão para compreender, apreciar, raciocinar e expressar uma escolha, pelo que é clínica e pericialmente avaliada, sendo de grande importância para a justiça.
A avaliação da capacidade para testemunhar traduz-se numa metodologia rigorosa que se debruça sobre o conjunto de dimensões do funcionamento psicológico da pessoa que poderão estar implicadas na capacidade para testemunhar, tais como características de personalidade, atenção, memória, processamento da informação, capacidade de abstração e funções executivas (conceito relacionado com a atividade das áreas cerebrais frontais que incluem diferentes processos cognitivos, tais como flexibilidade cognitiva, seleção de respostas, velocidade de processamento).
Podemos também referir que a avaliação da capacidade para testemunhar insere-se em algo mais vasto, que é a avaliação da capacidade em termos mais gerais, podendo o perito ser solicitado a pronunciar-se sobre outro tipo de capacidades, tais como a capacidade testamentária (para elaborar um testamento), capacidade para o exercício das responsabilidades parentais, capacidade de gestão financeira ou a capacidade para um cidadão reconhecer que está doente, recusar tratamento ou decidir sobre a sua alta médica ou internamento.
Alerte-se que os psicólogos forenses não têm bolas de cristal (se é que existem) e devem abster-se de responder diretamente a questões legais finais, como é o caso da veracidade dos factos em investigação, devendo ser o tribunal na posse de todos os elementos a tomar essa decisão.
Podemos distorcer memórias?
Sim, é possível. Quando somos expostos a um determinado estímulo, esse estímulo é transformado numa representação mental, sendo armazenado na memória e podendo ser extraído posteriormente com vários níveis de detalhe. Acontece que a memória pode sofrer a interferência de fatores individuais, como a idade ou o stress.
São vários os mecanismos através dos quais podem surgir distorções da memória passíveis de alterar o testemunho. Estas distorções podem decorrer do normal funcionamento da memória ou de sugestões externas recebidas pela pessoa.
Por exemplo, um dos mais conhecidos mecanismos para a sua ocorrência é o esquecimento, pois à medida que o tempo passa a nossa memória vai perdendo força e clareza.
De mãos dadas com o esquecimento está a noção de interferência, uma vez que estamos constantemente a processar mais e novos dados, informações e conhecimentos. São as constatações resultantes desta linha de investigação científica que suportam a ideia de que, na recolha de um testemunho, o horizonte temporal entre a observação de um episódio e o seu relato deve ser muito próximo.
Acontece também que a memória é considerada um processo maleável e falível, particularmente devido à sua natureza reconstrutiva, não refletindo os acontecimentos reais tal como estes decorreram.
Ou seja, a memória não é como um DVD que regista de forma rígida e emite sempre a mesma informação. A natureza reconstrutiva da memória tem na base a ideia de que o traço mnésico original deixa pequenos espaços possíveis de serem preenchidos.
Importa ressalvar que quem apresenta a informação potencialmente enganosa nem sempre tem intenção de gerar falsidade no registo que o outro fará do evento, pois a forma como uma testemunha é questionada pode influenciar a informação por ela prestada, distorcendo memórias.
As características do evento, como por exemplo violência, número de ocorrências, luminosidade, distância, podem também influenciar o testemunho.
Catorze capítulos sobre a Psicologia do Testemunho
O livro a Psicologia do Testemunho: Da Prática à Investigação Científica reúne 14 capítulos, que abordam os eixos centrais da Psicologia do Testemunho. Começando pelo enquadramento legal da prova testemunhal, navega pelos processos neuropsicológicos envolvidos no ato de testemunhar e sobre os efeitos da emoção na memória dos testemunhos ocular, auditivo e olfativo.
A avaliação pericial, quer psiquiátrica, quer psicológica, com repercussões na capacidade de testemunhar e na ponderação dos estilos de resposta (simulação, desejabilidade social) constituem matérias cruciais que não ficaram de fora.
O mesmo sucedeu com as técnicas e protocolos de entrevista, em adultos e crianças, visto que não raras vezes imperam nas diligências e salas de tribunal perguntas sugestivas, capazes de potenciar falsas memórias.
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