Saúde Mental

O impacto da pandemia na saúde mental dos portugueses

A pandemia chegou e com ela trouxe o confinamento, o distanciamento físico, o medo da infeção, a crise económica e a incerteza do futuro. Os planos foram adiados, os hábitos reajustados e a vida nunca mais foi a mesma. O aumento do stress e da ansiedade fizeram com que a nossa saúde mental saísse prejudicada de tudo isto.

O impacto da pandemia na saúde mental dos portugueses
Engin Akyurt

A vida mudou sem que nós pedíssemos

Estávamos em março quando as vidas dos portugueses mudaram. No dia 2, a ministra da Saúde, Marta Temido, anunciou os primeiros casos de covid-19 no país: dois homens, um de 60 e outro de 33 anos, ambos tinham regressado de viagens a Itália e Espanha. No dia 16, tivemos conhecimento da primeira morte, também através da ministra da Saúde. Dois dias depois, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, decretou estado de emergência por 15 dias. A partir desse momento, a vida nunca mais foi a mesma.

Os hábitos e as rotinas de grande parte da população sofreram um embate e todos tiveram de se adaptar a uma nova realidade. As crianças foram obrigadas a trocar a sala de aula tradicional por uma sala de aula virtual - a telescola - e os pais precisaram de estar presentes mais do que nunca, desempenhando também eles em parte o papel de professor.

O teletrabalho foi a solução que muitas empresas encontraram para evitar a propagação do vírus, manter os empregos e não parar a atividade. Mas muitos negócios não puderam recorrer ao teletrabalho e tiveram mesmo de fechar portas por tempo indeterminado, como por exemplo as lojas de roupa, restaurantes, espaços de cuidado e beleza.

O estado de emergência, que contempla o confinamento obrigatório e restrições à circulação na via pública, foi prolongado pelo Presidente da República três vezes e só terminou a 2 de maio. Durante esse período, os portugueses só podiam sair de casa para irem trabalhar ou fazer compras de bens essenciais e os ajuntamentos estavam proibidos.

As visitas à família e amigos foram trocadas por videochamadas, os abraços e os beijos perderam o lugar para as "cotoveladas" e passámos a não sair de casa sem chaves, carteira, telemóvel e máscara, o novo, que já não é novo, acessório que nos cobre parte do rosto e quase esconde por completo as emoções.

O facto é que grande parte dos portugueses esteve muito tempo fechada em casa, sem conversar cara-a-cara com um amigo, sem poder dar um passeio até à praia nos domingos de sol. Sem viajar, sem ver uma peça de teatro, sem ir a um jogo de futebol ou ao cinema. Fomos obrigados a encontrar alternativas para ocupar a mente. Para nos mantermos saudáveis também a esse nível.

Pandemia. Uma palavra que assusta. Não aconteceu só aos outros, está a acontecer a todos nós. A pandemia trouxe o medo de tudo e mais alguma coisa. Apesar de já não estarmos em estado de emergência, de já conseguirmos dar o tal passeio na praia e de fazer a visita aos pais e aos avós, sempre com os devidos cuidados, a verdade é que a pandemia deixou e continua a deixar marcas.

O que sabemos sobre o impacto da pandemia?

O bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses, Francisco Miranda Rodrigues, e a psicóloga clínica Manuela Bispo reconhecem que os dados sobre o impacto da pandemia ainda são poucos. À SIC Notícias, a psicóloga defendeu que ainda é "um pouco cedo" para apontar para grandes alterações. No entanto, não duvida que existam: "este período de confinamento é evidente que tem de deixar uma marca em todos nós".

Um estudo realizado pela Mind - Instituto de Psicologia Clínica e Forense concluiu que, numa fase inicial da pandemia, quase metade dos portugueses (49,2%) sentiu um impacto psicológico "moderado a severo". O que mais sentiram? Principalmente depressão, ansiedade e stress. As mulheres, os desempregados, as pessoas com menos escolaridade, com sintomas de gripe ou com doenças crónicas e ainda os habitantes de zonas rurais são os mais propícios a sentirem os impactos da pandemia.

O estudo desenvolvido no final de março contou com a colaboração do Centro de Investigação em Psicologia da Universidade Autónoma de Lisboa e do Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro.

À SIC Notícias, o bastonário da Ordem dos Psicólogos Portugueses disse prever que os impactos da pandemia na saúde mental cresçam nos próximos meses, sobretudo com o aumento do desemprego e da crise económica.

A Ordem dos Psicólogos divulgou um relatório sobre os impactos da pandemia na saúde mental dos portugueses, no Dia Internacional da Saúde Mental: "Crise Socioeconómica, Pobreza e Desigualdades Durante e Após a Pandemia".

A Ordem referiu no documento que o bem-estar e a saúde mental dependem de um conjunto de fatores socioeconómicos. À semelhança do bastonário, aponta para impactos negativos, como a diminuição do bem-estar e o aumento do stress e de problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão, provocados pela crise socioeconómica.

Segundo o relatório, os fatores socioeconómicos que agravam a saúde mental em contexto de pandemia são o desemprego, a precariedade laboral, a perda de rendimento, a pobreza e a exclusão social.

A resposta existe? "É uma pedrada no charco"

Francisco Miranda Rodrigues afirmou que o Aconselhamento psicológico na linha telefónica do SNS 24 veio melhorar a resposta ao impacto da pandemia na saúde mental e que o serviço é um passo histórico em "plena crise". No entanto, considerou que é limitado.

"Muitas vezes os psicólogos identificam a necessidade de ter que ter algum acompanhamento. Esse mecanismo de encaminhamento para o Serviço Nacional de Saúde não existe", argumentou.

A rezão? Não há psicólogos suficientes para dar uma resposta em tempo útil no Serviço Nacional de Saúde.

Estamos todos a viver uma "angústia existencial pandémica"

Há pessoas que não saem de casa porque têm receio de ficar infetadas, há pessoas que estão constantemente a desinfetar-se a si e aos objetos à sua volta com medo de ficarem doentes. A pandemia condiciona todos os dias a vida de muitas pessoas.

O psiquiatra Vítor Cotovio contou à SIC Notícias que costuma dizer que a sociedade está a viver atualmente "uma angústia existencial pandémica".

"Traduz-se como, ou porque estou mais obsessivo com os rituais de limpeza, há pessoas que estão a fazer mais do que aquilo que é necessário porque são muito obsessivas, limpam mas acham que está sujo e tornam a limpar, e vão verificar e ficam angustiadas, ou ficam mais hipocondríacas, ou ficam com ataques de pânico perante a ameaça de rutura e de perder a vida, a sua ou dos seus. Ou ficam mais paranoicos, a olhar para o lado e a dizerem 'será que este me vai infetar' e, portanto, ficam mais desconfiadas", considerou.

Questionámos que impacto a pandemia de covid-19 poderia ter nas pessoas com perturbações mentais. O psiquiatra explicou que podia acontecer duas coisas: acentuar muito os sintomas ou provocar recaídas.

Uma vez que a pandemia traz a ideia de contaminação, uma pessoa que tenha uma perturbação obsessiva compulsiva pode sofrer um aumento dos sintomas. E o mesmo acontece com alguém que tinha a doença controlada há anos.

"Na clínica, eu estou a apanhar situações de pessoas que já não via há 10, 15 anos, porque estavam estabilizadas e agora voltaram às consultas pelo impacto da pandemia. Ou porque voltaram a ter ataques de pânico, ou porque voltaram a desorganizar-se em coisas depressivas, porque às tantas não sabem bem o que é que vai acontecer na vida delas", disse à SIC Notícias.

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