Noutro texto sinalizei aspetos que não têm estado presentes na discussão política em torno da lei da eutanásia em Portugal. Renovo aqui o cuidado da interpretação: nada é dito sobre se a lei deve ou não existir e se o parlamento tem ou não legitimidade para a conceber.
O único ponto em discussão é a existência de lacunas num ato legislativo que tem tanto de poderoso – pensando naquilo que visa permitir – quanto de controverso – pensando nos dilemas que convoca.
Essas lacunas são: falta de fundamentação da eutanásia ativa face a outras possibilidades de antecipação da morte; falta de reflexão sobre os motivos da objeção de consciência pelos profissionais e possíveis implicações para a implementação equitativa da lei; falta de referência à atualização da formação dos profissionais de saúde envolvidos, bem como a falta de conhecimento sobre as suas necessidades, expectativas e experiências; e falta de debate público sobre os termos e implicações desta lei.
Perante a terceira versão da lei aprovada pelo parlamento, tenho dúvidas que a opinião pública saiba definir e distinguir a eutanásia, da sedação paliativa, do suicídio assistido ou da ortotanásia. Não percebo a resistência em devolver o debate à sociedade sobre os termos e os contornos de uma lei que se fundamenta pelo respeito da liberdade individual. Sem conhecimento informado não há liberdade e o paternalismo de olhar o cidadão como sendo incapaz de processar esta informação contraria os pressupostos desta lei.
Neste texto aprofundo mais a importância de a lei da eutanásia dever contemplar respostas às necessidades, expectativas e experiências dos profissionais que estarão envolvidos na concretização da boa morte. Saber o que os profissionais querem e precisam é condição essencial para que o espírito da lei seja respeitado e que esta seja devidamente aplicada.
Não significa ouvir apenas Ordens, outras associações e personalidades com destaque científico e mediático. Esse é um importante ensinamento dos países onde leis da eutanásia estão em vigor. Nada substitui a voz daqueles que estão à cabeceira do doente perante um sofrimento atroz e a antecipação da morte.
Por norma, os aspetos mais referidos pelos profissionais nos países onde a eutanásia foi regulamentada são:
A eutanásia pode cumprir a missão de libertação de uma condição intolerável
Quando a antecipação da morte ocorre num ambiente estável, respeitador dos tempos e das circunstâncias de cada pessoa e envolvendo uma relação próxima, transparente e confiante entre o doente, seus familiares e os profissionais, então cria-se um entendimento de partilha e de conforto pela missão de terminar uma situação de sofrimento atroz.
Estruturas de suporte emocional para os profissionais
Para responder à necessidade de gerir as diversas emoções a que os profissionais são expostos, muitas delas contraditórias e que colocam em confronto limites éticos individuais, obrigações legais e valores profissionais.
Protocolos claros e o devido enquadramento ético-legal
Há casos em que o processo de morte não decorre de forma gradual e serena (sinais de dor ou dificuldade respiratória). Nestes casos, os profissionais querem saber com rapidez que fármacos administrar, quando e em que doses, bem como sentir o conforto legal e ético de que as suas decisões não serão julgadas como "imorais" ou "assassinato". A perceção de que o doente sofreu durante a eutanásia tem implicações negativas nos profissionais.
Equipas multidisciplinares estáveis
A eutanásia envolve um trabalho multidisciplinar que deve ter o envolvimento contínuo das mesmas equipas. Isso é fundamental para a confiança da pessoa que deseja morrer, seus familiares e para os próprios profissionais. O acompanhamento dos familiares e profissionais deve continuar além do momento da morte.
Formação adequada
Aprofundar fundamentos da psicologia, sociologia, humanidades e comunicação reforça nos profissionais a segurança para uma aplicação controlada e consciente da eutanásia. Está descrito o reforço da identidade profissional de que a vocação serve para ajudar os outros e isso passa a incluir a antecipação da morte.
Em resumo, a lei da eutanásia jamais pode deixar de acautelar o enquadramento jurídico, educacional, organizacional e motivacional dos profissionais. Antecipar a morte obriga a ambientes estáveis, equipas dedicadas, complexas decisões circunstanciais e à preparação para lidar com situações de sofrimento inesperado. Se tudo isso estiver acautelado, então a eutanásia tem condições de cumprir os seus objetivos; caso contrário coloca os profissionais sob riscos emocionais, éticos e jurídicos.