É fácil antecipar o dedo em riste daqueles para quem será demasiada atenção dada a um caso concreto ou para quem é estar a ampliar na opinião pública um medo que prejudica o SNS a respeito de um acontecimento que não deixa de ser recorrente nos hospitais. Por isso, sublinho que ignorar o caso e não estabelecer ligações ao que se passa no Ministério da Saúde, das duas uma: ou é ter interesse político em minimizar o problema ou é ter incapacidade analítica de interpretá-lo.
O culminar do diferendo
O que se descreve aconteceu em 3 dias. A 20 de junho soube-se de uma carta assinada por 34 dos 37 médicos do departamento de obstetrícia, ginecologia e medicina de reprodução do hospital Santa Maria sobre a articulação com o hospital São Francisco Xavier enquanto decorrerem as obras do bloco de partos do primeiro hospital. O foco da crítica não foi a necessidade de requalificação, mas o processo de decisão sobre esta articulação.
As palavras do primeiro subscritor da carta, Diogo Ayres-de-Campos, até então diretor daquele departamento, são reveladoras: os profissionais de saúde são "quase como meros peões de um jogo de xadrez, movimentados para tapar buracos aqui e ali".
Como reação à crítica, o Conselho de Administração do hospital, encabeçado por Ana Paula Martins, exonerou Diogo Ayres-de-Campos das funções de diretor de departamento alegando falta de confiança.
Seguiu-se um pedido dos médicos para a revogação daquela decisão, que até à data foi ignorado por Santa Maria. Como resposta, mais de uma dezena de chefes e subchefes de equipa de urgência de obstetrícia apresentou a demissão, o que terá então motivado represálias laborais, segundo a Federação Nacional dos Médicos – um dos sindicatos da profissão.
Os antecedentes que interessam
A relevância do caso não está no facto de médicos terem apresentado a demissão da chefia de equipas de urgência. Acontece com alguma recorrência sem que se saiba no espaço público e sem que haja consequências na qualidade ou segurança dos serviços. A direção clínica do hospital nomeará outros médicos ou, em caso de indisponibilidade, as funções serão assumidas por alguém na hierarquia médica.
A relevância de tudo isto está muito mais nas pessoas envolvidas. Diogo Ayres-de-Campos é o coordenador da comissão técnica do Ministério da Saúde para as urgências de ginecologia, obstetrícia e bloco de partos, ainda nomeado pela ex-ministra Marta Temido. Ana Paula Martins assumiu a presidência do maior hospital do país por indicação de Fernando Araújo, o CEO do SNS.
O que está em causa é o conflito entre Ayres-de-Campos e Araújo, o que mostra problemas na orgânica e tomada de decisão no Ministério da Saúde. A coabitação entre ambos tornou-se impossível.
O conflito vem detrás. Perante a óbvia falta de médicos para manter todas as urgências obstétricas do SNS em pleno funcionamento, Ayres-de-Campos tem defendido o encerramento de serviços enquanto Araújo tem apostado no funcionamento alternado.
As primeiras brechas na Direção Executiva do SNS
Aqui está a primeira brecha na fortificação que se pensou para a Direção Executiva do SNS. Ao contrário daquilo que se quis passar durante meses, os problemas da falta de recursos e de organização do SNS não se compadecem com decisões técnicas simples. Ayres-de-Campos e Araújo personalizam uma divergência técnica de fundo. A questão é tão complexa que não se trata de dizer qual dos dois tem razão, porque o plano de ambos comporta riscos: o primeiro, de distância; o segundo, de confusão.
A questão é política e compete aos decisores políticos assumir a responsabilidade. Se se entende isto para outras áreas da governação – por exemplo, que a decisão da localização do novo aeroporto de Lisboa é política com base na ponderação de complexos fatores técnicos – por que motivo a saúde pode ser diferente?
A segunda brecha é Fernando Araújo ter sido questionado na praça pública. O ponto não é se tem razão ou se a rebelião está circunscrita ao grupo chefiado por Ayres-de-Campos. A partir deste momento, a Direção Executiva será responsabilizada caso algo de errado aconteça. Repito que não há soluções simples, pelo que o envolvimento dos profissionais é crítico para suportar a falta de meios e construir a perceção pública de que se fez tudo o que estava ao alcance.
A terceira brecha é o modo como a Direção Executiva toma decisões. Direi tantas vezes quantas forem necessárias que a ausência de estatutos deste organismo é incompreensível e traz inúmeros problemas. Alguns deles são a falta de transparência, de responsabilização e acusações de abuso de poder.
Foi disto que Ayres-de Campos de queixou, mas também foi isto que se viu na "lei da rolha" que a Direção Executiva está a impor aos hospitais na comunicação com a imprensa. Também no modo como os médicos estão a ser pagos para cumprir o funcionamento alternado das urgências, o processo de criação das Unidades Locais de Saúde ou dos Centros de Responsabilidade Integrados. Já para não falar na suspeita de ingerência sobre Santa Maria pela decisão (excessiva?) de exoneração de uma voz crítica.
A pior coisa que as pessoas que estão à frente da Direção Executiva do SNS podem fazer neste momento de vazio legal é comportarem-se como xerifes. Os Srs. não estão à margem da lei e não criam a lei à vossa imagem.
Enquanto a Direção Executiva for mantida nestes termos o maior prejudicado será o SNS. Não há ninguém no Ministério da Saúde que veja isso?