Cinco cancros depois … “uma vida normal e sem limitações”

O jornalista e sobrevivente de cancro, Álvaro Ludgero Andrade
Corria o ano de 2011. Álvaro Ludgero Andrade, jornalista, fazia parte do Conselho de Administração da Radiotelevisão Cabo-verdiana (RTC) e estava profundamente envolvido no processo de transformação da Televisão de Cabo Verde, de analógica para digital. No meio de tanto trabalho e de tantos compromissos, pouca importância deu ao sinal do primeiro cancro que lhe apareceu: sangue na urina. Fez o mesmo que tantos homens fazem. “Deixei passar, pensando que… passaria.”
Foi a mulher que o obrigou a ir ao médico urologista. A situação já era grave.
O diagnóstico era de cancro na bexiga e em Cabo Verde não havia meios para o tratar. Era preciso sair do país. “Eu e a minha mulher, Valéria, olhámos um para o outro e dissemos: ‘vamos enfrentar isto juntos, confiando em Deus, mas procurando também todo o tipo de tratamento possível’”.
Membros de uma comunidade religiosa, a fé muito contribui para que não desesperassem. “Pouco mais de uma hora, após ter recebido o o diagnóstico fomos até ao Farol de D. Maria Pia, de onde há uma linda vista da cidade da Praia (capital de Cabo Verde). Sozinhos, orámos a Deus e fizemos um pacto com Ele de que regressaríamos, com saúde, para continuar a trabalhar e a ajudar o meu país, não só do ponto de vista profissional, mas também no campo espiritual”, conta
Álvaro diz que “não houve revolta, nem aquelas perguntas de ‘por quê eu?’”. Nunca me lamentei, nem pensei que era o fim, embora tivesse noção de que o desafio aparentava ser dantesco”, diz. “Sabia que estava frente a uma enorme parede e, ou Deus me levantavas sobre essa parede ou abriria uma brecha por onde poderia passar.”
Álvaro, pai de três filhos, informou a família mais chegada, a mãe, irmãos e cunhados e telefonou a um irmão que vive nos Estados Unidos casado com uma enfermeira. “Venham rápido”,disseram-lhe.
Cerca de uma semana depois, estava nos Estados Unidos, em Massachusetts, o único Estado com um seguro de saúde universal, com base no qual conseguiu fazer todo o tratamento. “Todos os meus amigos em Cabo Verde, nos Estados Unidos e em vários outros países, mantiveram uma intensa campanha de oração, confiando que Deus me iria ajudar a superar essa dificuldade”
Após seis meses de quimioterapia (quatro sessões em três semanas e uma de descanso a cada mês) seguiu-se a cirurgia. “Na verdade, devido aos tratamentos avançados existentes nos Estados Unidos, não tive grandes problemas, a não ser algumas náuseas e um pouco de cansaço nas primeiras sessões. O cabelo caiu um pouco mas não tanto e, na verdade, engordei devido à quimioterapia”, recorda Álvaro Andrade.
Em novembro de 2011, depois de uma cirurgia de oito horas e meia, uma enorme equipa médica do Boston Medical Center retirou-lhe a bexiga e reconstruíu-a com parte do intestino Delgado. Foi-lhe retirada também a próstata onde já existiam lesões.
Durante os nove meses que esteve em tratamento nos Estados Unidos continuou a trabalhar, aproveitando as vantagens das novas tecnologias. “Trabalhei de forma intensa, na finalização do processo de transformação da TCV, o que me permitiu manter ativos, tanto a mente como o corpo, impedindo, ao mesmo tempo, que sentisse pena de mim. Álvaro acredita que o trabalho talvez tenha sido “a sua maior terapia”, além do convívio com os amigos e familiares (as filhas viajaram de Cabo Verde para se juntarem a ele) e com a sua comunidade de fé em New Bedford.
Uma sucessão de novos sobressaltos
Em fevereiro de 2012, Álvaro Andrade regressou a Cabo Verde, continuou a trabalhar na RTC e a dar aulas numa universidade,
Em setembro, sete meses depois, estava em Dakar numa conferência internacional quando, ao acordar, reparou numa pequena mancha, como que de sangue,no pijama. Não prestou muita atenção e só foi ao médico quando o episódio se repetiu.“Um cirurgião amigo analisou o meu mamilo esquerdo e disse que podia ser um quisto, mas que, devido ao meu histórico, seria preferível retirar a mama”.
Face a este novo cenário, Álvaro Andrade decidiu fazer as malas e regressar definitivamente aos Estados Unidos. Em Cabo Verde, não existiam condições para continuar a manter o controlo semestral e eventuais tratamentos.
Em maio de 2013,foi confirmado um cancro na mama esquerda. Menos de três meses depois, sem qualquer tratamento, submeteu-se a uma cirurgia (mastectomia) para a retirar. A outra, seria extraída mais tarde, em Washington, para onde, entretanto, se mudou.e onde trabalha na “Voz da América” (VOA) como chefe de redação do “Serviço em Português”
A saga não havia, contudo, terminado.
Novo sobressalto, um ano depois, quando na sequência dos exames de controlo do tumor da bexiga lhe descobriram um cancro no pâncreas, ainda em fase embrionária.
“O alerta dos médicos foi total e, remetendo a retirada da mama direita para depois, avançaram para a cirurgia”, conta. Numa operação de sete horas e meia retiraram-lhe o pâncreas e a vesícula.
Depois de algum tempo de controlo dos cancros anteriores, Álvaro foi submetido à masectomia da outra mama.
“Desde então houve duas ameaças, com exames positivos de cancro na uretra, mas, milagrosamente, não passaram disso” diz.
Nunca permiti que a morte fizesse morada na minha mente”
Ao longo deste percurso de doença, hospitais e tratamentos, Álvaro admite que pensou na morte. “É uma ideia que me ocorreu, sim, principalmente no início, mas nunca permiti que fizesse morada na minha mente, caso contrário ficaria paralisado.” Não por medo porque afirma não ter medo “da eternidade”, mas por “alguma situação de sofrimento que possa afetar” a sua família ou deixá-lo incapacitado.
Perante todas as ameaças, é à fé em Deus que se entrega e que, neste processo, tem sido “determinante”, considera. “Desde o principio, pedi a Deus que me deixasse ver crescer as minhas filhas e ver meu filho tornar-se independente.”
Independentemente da fé que lhe tem dado força e confiança,reconhece “o papel importante da medicina, dos tratamentos, e dos profissionais” que o seguem e a quem sempre agradece, considerando que “não há conflito entre fé e medicina, porque a primeira complementa a segunda.”
Quanto a ele, diz ter feito sempre a sua parte: “Manter uma dieta saudável e uma vida ativa, afastar pensamentos negativos e estimular os outros.”
Não é uma sentença de morte
Receber um diagnóstico de cancro “não é uma sentença de morte”, diz Álvaro a todos os que são confrontados com esta situação.
Recomenda, em primeiro lugar, que a pessoa “aceite que está doente, que necessita de tratamento urgente e que siga os médicos (não a internet ou os gurus armados em experts).”
Em segundo lugar, sublinha a necessidade de “manter uma mente saudável, crer que vai vencer sem procurar encontrar causas para a doença ou entregar-se à morte.” Manter uma “vida ativa, física e mentalmente, fazer exercícios com regularidade e assegurar uma alimentação cuidada”, é outra das suas recomendações.
Refere também o papel essencial da “família e dos bons amigos” durante estes processos, lançando, contudo, um alerta: “Atenção! há que fugir das pessoas negativas, daquelas que nos vêm visitar como se fossem a um velório. Não há que ter medo de se afastar dessas pessoas.” E afirma, confiante: “Os desafios são para ser vencidos!”
04 janeiro 2021
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