“Habituem-se” foi o mote de António Costa após as polémicas que envolveram o seu Executivo. A mensagem foi clara: a legislatura, para o primeiro-ministro, terá quatro anos. No entanto, será que este Governo já acumulou situações suficientes para que o Presidente da República dissolva o Parlamento?
Um ano de maioria absoluta do Partido Socialista contabilizou 13 demissões com várias polémicas à mistura. Para Marcelo, a dissolução da Assembleia da República seria “uma má notícia” tendo em conta a crise económica do país. No entanto, o Presidente da República acrescentou que “às vezes tem de haver más notícias”.
O que se passa, afinal, com o Executivo de António Costa?
“O problema central deste Executivo é o seu cansaço e, no fundo, ganhou uma maioria absoluta de forma um bocadinho inesperada. Estamos a assistir ao desgaste natural de um Governo de oito anos, sendo um dos problemas centrais o recrutamento de pessoas menos cotadas politicamente, com um escrutínio público a que não estão habituadas”, explica-nos Jorge Fernandes, investigador no Instituto de Políticas e Bens Públicos.
Esta situação não é nova, como relembra o investigador. Já com o Governo de Cavaco Silva, também de oito anos, a situação era semelhante: “demissões, muita ilusão, dificuldade em colocar caras novas”.
Antes desses oito anos de Governo, Cavaco já só tinha governado dois até 1987, em que Mário Soares dissolveu o Parlamento e convocou eleições legislativas. Essas eleições deram ao PSD a primeira maioria absoluta de um só partido em democracia e, a partir daí, tal como acontece com o PS, os anos de trabalho começaram a pesar.
Para Paula Espírito Santo, professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e investigadora em sociologia política, as demissões e polémicas acabam por ser “um sinal de fraqueza por ser um número exagerado e muito concentrado num curto espaço de tempo que desacredita a própria democracia e o próprio sistema democrático”.
As “más notícias” não vêm porquê?
Apesar dos apelos da oposição para a dissolução do Parlamento e dos exemplos históricos em que a Assembleia da República já foi desmontada por menos, o Presidente da República recusa essa opção, por agora, alegando que só agravaria a crise económica do país e atrasaria o cumprimento de prazos na aplicação dos fundos europeus.
Para os cientistas políticos, o fundo da ação de Marcelo é ambígua, mas concordam na tarefa difícil em que o chefe de Estado se encontra.
“A avaliação que o Presidente da República faz é puramente política. O regular funcionamento da instituição é uma mera "juridiquês" para o Presidente fazer aquilo que entende no momento que perceber que o Governo já não goza da confiança política da população. Foi isso que fez Jorge Sampaio que não gostava da maioria na altura e tomou essa decisão”, esclarece Jorge Fernandes.
Em janeiro de 2002, face à demissão de António Guterres, Sampaio decretou a dissolução do Parlamento, levando a eleições ganhas pelo PSD que, com o CDS-PP, detinha uma maioria.
Também, em 2004, Sampaio dissolveu novamente a Assembleia da República, quando Pedro Santana Lopes chefiava o XVI Governo, em substituição de Durão Barroso, que tinha deixado o cargo de primeiro-ministro para exercer as funções de presidente da Comissão Europeia.
Para Jorge Fernandes, Marcelo tem um pau de dois bicos nas mãos se dissolver o Parlamento, tendo em conta que pode influenciar o sistema partidário e a constituição dos assentos na Assembleia da República, caso o faça neste momento.
“É evidente que as condições estão mais reunidas para isso acontecer, agora Marcelo tem duas coisas difíceis. Vamos supor que as eleições davam, de novo, uma maioria para o PS, isso colocaria o Presidente da República numa situação extremamente delicada. Depois, Marcelo não quer ficar com o ónus de ser a pessoa que poderá eventualmente abrir caminho, através de umas eleições, para a chegada de um partido como o Chega ao poder”, explica o investigador em Madrid.
Para Jorge Fernandes, “o PSD nunca vai ter maioria sem o Chega” nas circunstâncias atuais, algo que o próprio Presidente já evidenciou ao referir que não existe alternativa política, de momento.
Para a professora Paula Espírito Santo, a análise sobre a não dissolução é outra, passando mais pela fragilidade democrática em que Portugal ficaria.
“(Duas dissoluções num ano) criaria alguma instabilidade, não só política, como económica, e daria sinal de fraqueza em termos internacionais. Um país democrático não pode ter eleições de dois em dois anos e esse talvez seja o motivo muito direto”, explica a professora.
Mas os motivos não ficam por aí. Para Paula Espírito Santo, o Governo teve uma legitimação há muito pouco tempo através de uma confirmada maioria absoluta pelos eleitores portugueses e, também, as circunstâncias e as falhas do Governo estão a ser muito visíveis, mas não estão propriamente a impedir a funcionalidade do Executivo.
O que querem Belém e São Bento?
A cautela e precaução de Marcelo Rebelo de Sousa pode ser suspeita, tendo em conta as suas filiações partidárias, mas os motivos que elenca para a não dissolução do Parlamento servem o melhor interesse da Nação.
Porém, para Jorge Fernandes, “nenhum político serve só os interesses da Nação, todos os políticos por definição, da esquerda à direita, têm, acima de tudo, a sua sobrevivência política e o seu papel na história como principal motivador das suas ações”.
Apesar do processo eleitoral ser lento em Portugal, o investigador acredita que “a democracia não é bloqueada e o PRR [Plano de Recuperação e Resiliência] é uma desculpa”. No entanto, o Presidente tem medo que fique responsável pelo crescimento do Chega no sistema partidário, com o PSD inapto para liderar sozinho.
Já Paula Espírito Santo acredita que Marcelo Rebelo de Sousa não tem interesses políticos, nem pessoais, dado que “não tem nada a perder” por estar já no seu segundo mandato.
“Marcelo Rebelo de Sousa é uma pessoa que se entrega ao serviço público, à política, desde sempre, acaba por ser alguém que está fora da normalidade no plano de entrega à política. Ele é o exemplo maior de serviço público, dada a entrega e envolvência - que até por vezes é considerada excessiva – em todos os patamares e palcos da política”, explica a professora.
Apesar de considerar que o Presidente tem “sempre que salvaguardar a sua posição institucional e pessoal”, Espírito Santo considera que Marcelo tem de ter mais “elementos, para além das polémicas, que fragilizam a ação governativa dos ministros”.
No entanto, a professora salvaguarda que, se a tendência das polémicas e instabilidade governativa aos olhos da opinião pública continuar ou, até mesmo, agravar, o Presidente terá de intervir e pedir ao primeiro-ministro que se demita ou ao dissolver o Parlamento. Porém, “não será nos próximos tempos”.
Após todas as polémicas e demissões, nada disto pareceu, ainda, abalar o primeiro-ministro António Costa que deu uma entrevista à Visão, onde aparece sentado numa poltrona de perna cruzada e onde referiu que “desde 30 de janeiro que andam aqui a remoer, habituem-se, vão ser quatro anos”.
Porém, os anos à frente de três diferentes executivos, com pessoas a sair e a entrar, e o primeiro-ministro a ficar, foram desgastando a sua capacidade de controlar a situação governativa.
“Acho que António Costa está um bocadinho cansado do cargo, já são muitos anos e ele também não passou propriamente momentos fáceis. Quer a pandemia, quer agora a guerra e a inflação, são momentos que desgastam muito mais do que governar num tempo normal”, expõe Jorge Fernandes.
O primeiro-ministro já realçou que quer que a legislatura vá até ao fim, porém são conhecidos os seus desejos e anseios pela Europa. O investigador considera que “não é claro o que quer o primeiro-ministro”.
“Ele diz que Belém não é opção, também não acho que vá para casa tomar chazinho, o que eu acho é que, se as portas da Europa fecharem, se não funcionar, ele é capaz de apostar em Belém”, comenta Fernandes.
A professora do ISCSP considera que “poderá estar no horizonte uma outra opção no plano europeu”, mas relembra que Costa já afirmou que “não quer fugir para sítio nenhum, dando alusão ao passado com o caso de Durão Barroso”.
“Eu acho que, neste momento, ainda não se coloca na mesa, também não penso que o que está acontecer é propositado. Há aspetos que lhe estão a fugir, as pessoas têm fragilidades e a política acaba por ser muito mais observada publicamente”, observa Paula Espírito Santo.
Este é o Governo com mais polémicas?
Ambos investigadores consideram que este Executivo já acumulou bastantes situações que não se igualam a Governos de anos anteriores, desde 1974.
“Aqui há umas semanas fiz um exercício: fui ver os jornais da altura de Santana Lopes e aquilo era uma anedota, como quando Santana Lopes se tinha atrasado para reunir com o Presidente, porque tinha ficado a dormir sesta, porque foi à Moda Lisboa no dia antes. O que estamos a falar agora é bastante diferente”, aponta Jorge Fernandes.
Nenhum ministro do Governo de António Costa se atrasou para uma reunião por estar a dormir a sesta - do que sabemos -, mas foram apanhados a “dormir” em diversas circunstâncias de transparência.
Retirando as demissões por motivos pessoais, tudo começou no Ministério da Saúde, em que Marta Temido não resistiu à crise nas urgências hospitalares. Saíram também, por inerência, os ex-secretários de Estado António Lacerda Sales e Maria de Fátima Fonseca.
Depois, foi por aí fora:
- Miguel Alves deixou o cargo de secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro depois de ser acusado de prevaricação
- João Neves, secretário de Estado da Economia
- Rita Marques, secretária de Estado do Turismo
- Alexandra Reis, com a indemnização de meio milhão de euros que causou polémica, o que levou à sua demissão em menos de mês da posse do cargo secretária de Estado do Tesouro
- Pedro Nuno Santos que só recentemente admitiu ter autorizado a indemnização
- Hugo Santos Mendes, secretário de Estado das Infraestruturas
- Carla Alves, secretária de Estado da Agricultura, demitiu-se por contas arrestadas na sequência de um processo judicial que envolve o marido. Esteve no cargo 25 horas.
Para além disso, o caso de Alexandra Reis não desapareceu, dado que, para resolver o problema, o ministro das Finanças Fernando Medina e o ministro das Infraestruturas João Galamba anunciaram o despedimento da CEO Christine Ourmières-Widener por justa causa, tendo em conta a indemnização dada à ex-administradora.
Com isto, surgiram as comissões parlamentares de inquérito, em que ambas prestaram declarações e fizeram revelações que trouxeram, de novo, as dúvidas no que diz respeito à sustentabilidade governativa do Executivo de António Costa.
A chegada de 14 novos membros no Executivo em um ano - como se tratasse de uma renovação propositada de um Governo cansado - não impediu que as contestações sociais nas ruas surgissem, sendo a maior de todas as dos professores.
Causas como a habitação e o aumento do custo de vida também têm sido as mais expressivas e têm enchidos as grandes cidades do país.
Todo este acumular não chegou para Marcelo, por todas as circunstâncias políticas, económicas e internacionais. Resta saber quando será a gota de água, se ainda houver água para escorrer.