Violência em Moçambique

Violência em Moçambique. Religiosa portuguesa fala em "filme de terror"

A religiosa da Congregação das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima acusa o Governo de ter interesses neste conflito.

Violência em Moçambique. Religiosa portuguesa fala em "filme de terror"
LUIS MIGUEL FONSECA

Uma religiosa portuguesa que está numa missão a meio milhar de quilómetros de Cabo Delgado, em Moçambique, relatou que a situação nesta província "parece um cenário de um filme de terror", acusando o Governo de ter interesses neste conflito.

"Sinto revolta e impotência perante esta realidade. Revolta porque considero que já há muito se poderia ter acabado com esta guerra tão cruel e sem sentido, a começar pelo próprio Governo que, internamente, se mantém em silêncio e passa uma mensagem ao povo de que tudo está bem e sob controlo", afirma Mónica Rocha, da Congregação das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima, que tem uma missão em Lichinga, província de Niassa.

Num depoimento escrito enviado pela congregação, a religiosa de 42 anos, natural de Arouca, considera que "esta é das piores guerras que podem existir, pois é uma guerra de conflitos, de interesses, onde o próprio Governo tem interesses", manifestando "impotência por ouvir tantos relatos de pessoas que foram decapitadas e por ver o sofrimento no olhar de quem viu os seus familiares e conhecidos serem selecionados para morrer".

A vila de Palma, na província de Cabo Delgado, sofreu um ataque armado na quarta-feira da semana passada que as autoridades moçambicanas dizem ter resultado na morte de dezenas de pessoas e na fuga de centenas.

O movimento terrorista Estado Islâmico reivindicou na segunda-feira o controlo da vila de Palma, junto à fronteira com a Tanzânia.

A violência na região está a provocar uma crise humanitária com quase 700 mil deslocados, segundo agências da ONU, e mais de duas mil mortes, segundo uma contabilidade feita pela Lusa.

No mesmo depoimento, Mónica Rocha, que descreve um povo sofrido, mas solidário, adianta que, quando os deslocados começaram a chegar a Lichinga, "o Governo criou alguns centros de apoio e campos com tendas para os acolher, mas muitos e muitos mais começaram a chegar e estes espaços tornaram-se insuficientes".

"Mas, felizmente, graças à boa vontade de muita gente, muitos dos deslocados, foram acolhidos nos bairros, pela população, em suas próprias casas ou alguma casa desabitada" observa, explicando que "os deslocados que se encontram nos campos ou centros são apoiados pelo Governo, e têm uma ajuda mensal para a alimentação", mas "os restantes, apesar das promessas, nada recebem e sobrevivem com a ajuda dos vizinhos, que na maioria pouco tem".

A religiosa, que aborda as visitas ao campo de deslocados de Malica e o sucesso de uma campanha solidária no Natal de 2020, nota que "apesar de vários países e organizações estarem a ajudar monetariamente os deslocados, infelizmente esses valores em grande parte não são aplicados para o fim a que se destinam ou não são bem distribuídos", exemplificando que "todas as famílias de deslocados que estão a viver nas comunidades" do seu bairro "não recebem nenhum apoio".

A religiosa, que está há três anos e meio em Lichinga, expõe ainda relatos de sobreviventes que "conseguiram fugir deste terror".

"'Eles vieram de repente e nós fugimos todos de casa e só tivemos tempo de nos esconder na pocilga dos porcos, mas nem todos conseguimos... Os que foram apanhados foram cortados aos bocados para que os que estavam escondidos ao verem isso a acontecer acabassem por aparecer'", cita a freira Mónica Rocha.

Os testemunhos acrescentam que "eles mandaram as crianças embora e pegaram fogo às pessoas que não fossem muçulmanas e recusassem ser insurgentes, e quem tentava fugir era morto a tiro".

Na missão, residem atualmente duas religiosas e quatro jovens aspirantes. Possui uma escola, frequentada por 160 crianças em idade pré-escolar, auxilia na pastoral paroquial e ajuda algumas famílias.

"Neste momento, devido à pandemia da covid-19 que assola o mundo, já estamos há mais de um ano com a escolinha fechada e sem atividades na paróquia e na comunidade envolvente", informa Mónica Rocha, que pede a quem puder ajudar que o faça através da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre ou da Congregação das Irmãs Reparadoras de Nossa Senhora de Fátima.